Usando arte, literatura e música como pano de fundo, “Retrato de Uma Jovem em Chamas” narra o amor e sororidade entre mulheres no final do século XVIII
Vencedor do Melhor Roteiro e a Palma Queer do Festival de Cannes 2019, o drama francês, sob o olhar feminino da diretora Céline Sciamma, estreia hoje (9) nos cinemas brasileiros
“Retrato de uma jovem em chamas” traz o apelo universal e irresistível de uma boa história de amor. Embora se passe na França do século 18, a trama, centrada no romance entre a pintora Marianne (Noémie Merlant) e a jovem Héloïse (Adèle Haenel), mergulha em questões atuais importantes sob uma perspectiva feminina. Com elenco composto quase exclusivamente e propositalmente por mulheres, o longa escrito e dirigido por Céline Sciamma já indica o olhar feminino como objetivo da obra desde a primeira cena.
Marianne é uma jovem pintora que recebe a tarefa de fazer um retrato de Héloïse para um “casamento arranjado” sem que ela saiba. Contratada pela Condessa (Valeria Golino) a fim de eternizar a filha, Héloïse (Adèle Haenel), como maneira de convencer o prometido milanês quanto aos dotes físicos da herdeira da posição de noiva após o suicídio da primogênita, que obrigou a caçula a deixar a vida no convento e se casar no lugar da irmã. Com raiva, ela se recusa a posar para um pintor que desistiu de retratá-la. Marianne se apresenta como uma dama de companhia e deve seguir a jovem nas caminhadas diárias pela praia.
É na diferença entre o destino entregue a Héloïse e a liberdade de Marianne como artista independente e livre do casamento obrigatório que a relação se fortalece e abre espaço para um romance enquanto elas descobrem a si mesmas. Passando os dias observando Héloïse e as noites pintando, Marianne se vê cada vez mais próxima de sua modelo conforme chegam os últimos dias de liberdade. Sciamma faz com que a câmera tome o lugar do pincel de Marianne, mostrando Heloïse sendo observada a cada curva do rosto, da orelha e da boca, enquanto retribui o olhar curioso. A cineasta capta a sensualidade do ver e ser visto.
A ambientação estimula o contato com a arte, a música e a literatura. Há uma analogia traçada entre o romance das protagonistas e o mito grego de Orfeu e Eurídice: o poeta tinha que conduzir a amada Eurídice do mundo inferior, pertencente aos mortos, de volta à superfície sem olhá-la. Ainda assim, a poucos metros de ter seu amor de volta entre os vivos, Orfeu cedeu ao impulso, virou-se em sua direção e a condenou novamente à morte. Uma forma devastadora de ilustrar como o amor dessas personagens é igualmente épico e trágico, dependendo única e exclusivamente de Marianne, mais especificamente de seus talentos artísticos, a exposição de sua amada ao pretendente e futuro marido.
A convivência das duas ao longo de uma semana em uma casa na companhia apenas da criada Sophie (Luàna Bajrami), evidencia personagens fortes, além de diálogos e ações que tratam sobre a opressão sofrida pelas mulheres. Até mesmo o tema do aborto é abordado nos instantes em que Marianne e Héloïse auxiliam Sophie num ato de sororidade.
Em contradição com o que se esperaria de uma produção de época, a direção de fotografia explora ambientes bem iluminados durante o dia, e escurecidos à noite. O ambiente soa desconectado do seu tempo, ao passo que o casarão não trava contato com o resto do mundo. Privilegiando a abordagem intimista, ela relega ao pano de fundo um contexto social sobre a opressão sofrida pelas personagens.
“Retrato de uma jovem em chamas” consegue retratar com riqueza de detalhes as frágeis relações interpessoais que mulheres viviam em 1770, onde tinham poucas chances na sociedade fora de um casamento heterossexual. O modo como Céline Sciamma entrelaça demandas pessoais, convenções sociais e o papel da arte faz desse filme um dos melhores lançados no último ano. No Festival de Cannes, o filme levou os prêmios de Melhor Roteiro e a Palma Queer. Também foi indicado a Melhor Filme Estrangeiro no Globo de Ouro 2020, perdendo para o sul-coreano “Parasita”. O longa estreia hoje (9) e está em cartaz no Moviemax Rosa e Silva e no Cinepólis.
*Por Marta Souza