O Mais contemporâneo dos regionais

Desde a abertura do Oficina do Sabor, a cozinha  pernambucana ganhou um estilo particular de recriar sabores regionais. A ousadia vem das mãos do chef César Santos, que deu aos sabores da terra uma nova linguagem e lugar de destaque.

Desde a abertura do Oficina do Sabor, a cozinha  pernambucana ganhou um estilo particular de recriar sabores regionais. A ousadia vem das mãos do chef César Santos, que deu aos sabores da terra uma nova linguagem e lugar de destaque.
“É aqui mesmo?”, perguntou o motorista. O táxi tinha parado diante de uma casinha, que se não fosse destacada pelas cores laranja e roxo, seria iguais as outras da Rua do Amparo, no sítio histórico de Olinda. Havia dito ao taxista que iria para o Oficina do Sabor, ele desconhecia, expliquei que era um dos restaurantes mais conhecidos da cidade, e que fez história na tradicional cozinha pernambucana. Eram 10h, toquei a campainha, a porta foi aberta,  do outro lado uma senhora, com vassoura na mão, interrompeu, “Diga?”. Falei que havia combinado uma entrevista com o chef César Santos. “Marcou de que horas?”, indagou ela.  “As 10h30”. Edileuza me acomodou em um sofá marrom de couro, numa ante-sala, com algumas obras de arte. Posição que fiquei até o horário previamente marcado, quando o chef apareceu saltitante, meia hora depois, alegríssimo consigo mesmo e com sua pontualidade.

No início dos anos 90, César Santos era considerado o maior chef de cozinha de Pernambuco. Seus camarões mergulhados em molhos de frutas tropicais, guardados em curiosas morangas eram, como se dizia na época, a coqueluche dos bem nascidos da cidade. Poderia também ter sido um decorador de sucesso extraordinário. Por que não foi? “Porque não aguentaria que um casal viesse me dizer que queria uma sala com hometheater para ver novela com as crianças”, responde, na lata. Esse feeling de decoração ocupou o chef durante os 30 minutos que eu o esperava. “Estava terminando de fazer uns arranjos. Gosto de cuidar de cada detalhe do restaurante”. O Oficina do Sabor mescla-se a uma galeria de arte regional. Multicromático, cada centímetro quadrado está ocupado por quadros,  pinturas em pratos, peças de antiguidade, objetos artísticos, adereç os, vasos d e todos os tamanho s e formatos, troços, coisas, trecos. 

Ele não sabe explicar a origem dessa veia artística. Perguntei a data de nascimento. “Três de outubro de 64”, disse sem vaidades. Na resposta pode conter a chave da incógnita. Pessoas que nascem sobre o signo de libra, comumente, têm a estética como referência. Para estar bem, deve estar cercado de beleza e harmonia. Características, aliás, recorrentes em seus pratos. Coloridos, alegres, bem montados, tecnicamente irrepreensíveis. “Qualquer pessoa se torna uma artista a partir do momento de pega uma coisa feia, trabalha, e faz algo bonito”. Para ele, qualquer profissão pode ter essa conotação, “Não é só pintar. Tudo o que se faz em prol de um bem comum acaba virando arte. As plásticas de Ivo Pitangui, por exemplo, são divinas”, defende. O rigor estético também se estende ao visual: traja jeans Diesel, pólo Lacoste, chinelo de couro, e armação de óculos Gucci.

Desde criança, César sempre foi fascinado pela cozinha. Filho de doméstica, junto aos oito irmãos, ajudava a mãe nas tarefas do lar. “Com oito anos, já metia as mãos nas panelas. Fazia a comida dos meus irmãos”. Aprendeu o ofício com sua mãe, Edelnita Santos, observando as formas de cocção da matriarca, reinventava, e um novo prato já estava criado. “Gostavam da salada de maionese que  fazia, inventava um arroz diferente, refogado com cenoura e vagem, na época era vanguarda”, lembra. No entanto, só veio entender que queria seguir carreira de cozinheiro aos 17 anos, “Era o que o mais sentia prazer em fazer”. Foi estudar no Senac, e lá já se destacava pelas novas ideias que concebia. “Provei que podia ser ousado  sem deixar de lado o gostinho nordestino”, afiança.

 

 


Iniciou a carreira aos 23 anos, trabalhando em bares e restaurantes como segundo chef, mas logo passou a atuar com um serviço de buffet próprio, oferecendo jantares a domicílio. O grand moment da vida de César só aconteceu após apagar as 27 velas do bolo de aniversário, foi também o grito de independência da alta gastronomia pernambucana. Abriu o Oficina do Sabor, que surgiu pequeno, em 1992, mas surpreendeu a todos os paladares com suas receitas exóticas que trouxeram novos sabores e rumos para a cozinha do Estado. O segredo foi, no mínimo, inovador: a mescla de frutos do mar com frutas e ervas. “Os louros de patrono da cozinha contemporânea pernambucana vieram para mim de forma totalmente ocasional”. Segundo o chef, sua pretensão era dar outras possibilidades a cozinha regional feita pela sua mãe. “Comecei a valorizar os produtos da terra que tinham no mercado, de uma maneira diferenciada”, sentencia.

Pernambuco, hoje, é o terceiro maio pólo gastronômico do país. Ou seja, em todo o Brasil, o Estado tem a terceira maior população que sai para comer em restaurantes. Perde apenas para São Paulo e Rio de Janeiro. César credita essa evolução a juventude dos anos 90, sobretudo ao Manguebeat. Lembra, também, que antes desse movimento a cultura regional estava adormecida. “Nesse momento, as riquezas culturais do Recife e Olinda pareceram despertar. Começou um movimento de valorização do que é nosso. Foi o fermento para o Oficina”. A partir dessa revalorização o conceito cultural mudou, junto a ele, os hábitos alimentares. O público passou a ver com bons olhos ingredientes típicos, possibilitando uma evolução da gastronomia dentro do mercado. “Ninguém saía para comer carne de charque e jerimum em um restaurante chique. Bom era comer lá fora. A gastronomia montou no cavalo do Manguebeat e cresceu”, avalia.

O resultado desse boom gastronômico pode ser visto, por exemplo, na quantidade de escolas que oferecem o curso de gastronomia no Recife. Enquanto na década de 80, só o Senac tinha essa proposta, hoje já são seis instituições que formam cozinheiros. Na contramão da época, César decidiu, deliberadamente, fazer cozinha regional revisitada. “O Senac não me passou nada,  observei o mercado e premeditei o que poderia dar certo”. O rótulo de chef, e de restaurante contemporâneo só veio depois. “Não percebi que estava iniciando um novo movimento. Só quando a imprensa começou a  falar do meu trabalho, diziam que meu restaurante era vanguardista”, lembra, aos risos. Hoje o Oficina do Sabor  é ponto de referência em Pernambuco e no Brasil, por radicar no Estado  os conceitos de contemporaneidade na cozinha.

Cozinha contemporânea que, atualmente, é o supra-sumo dos recém formados em gastronomia. O chef critica esses “recém cozinheiros, que ansiosos, mal saem das faculdades e já bordam seus nomes nos dólmãs* brancos”. E entram em êxtase quando alguém os chama de chefs, condição na qual acreditam piamente se enquadrar. “ São apenas cozinheiros. Chef é uma profissão que não existe só se pode ser, desde que se coordene uma equipe”, alfineta. César ainda se descontenta ao ver a postura que esses profissionais vem aderindo. “Eles não se preocupam em aprender a comida de sua terra. Já querem partir para emulsões e espumas”, analisa.


Hoje, aos 45 anos, César defende que o que faz é apenas “comida brasileira, meus pratos estão dentro do conceito do Brasil como um todo”. Está em um patamar que, além das atividades na cozinha, também atua como diretor de alimentos da ABRASEL – PE; diretor da Associação dos Restaurantes da Boa Lembrança nas regiões Norte e Nordeste e, ainda, Diretor no Norte/Nordeste da Associação Brasileira da Alta Gastronomia (Abaga). Ainda ministra aulas e cursos e está sempre envolvido em festivais gastronômicos mundo afora. “De certa forma, acabei virando uma celebridade. As pessoas abordam, pedem foto”. Apesar do status pop, o chef não deixa que o preço da fama seja o comodismo do seu trabalho. “Quando as pessoas vem ao Oficina, elas querem o melhor, se divertir, e para isso pagam bem. Faço de tudo para que o serviço esteja impecável”, ressalta. Como prova, em todos os momentos que tem disponível, lá está ele, fiscalizando tudo. No meio da conversa, chega um cheque precisando de sua assinatura, “Olha aí, R$800 só de camarão. Sem eu checar, nada sai ou entra daqui”.

Quando, raramente, não está comandando os fogões, a cozinha, ainda assim,  faz parte de seu cotidiano, “gosto de cozinhar para os amigos e família  na minha casa”. Diz que é um prazer, além de exibição. Vaidoso com o que cria, gosta de ver o deleite e receber elogios. Quando está sozinho, cai muito bem um pão com ovo “Quer coisa mais prática?”. E não se aborrece quando algum familiar ou amigo liga pedindo receitas, ou solicitando serviços. “Ter um chef no seu meio é para isso mesmo. Se tivesse algum primo cantor ia ter que dá canja para mim”, brinca César. Olhou para o relógio, mandou buscar seu dolmã, “São 12h30, preciso trabalhar”. Entendemos a pontualidade.

 


Por Eduardo Sena- Colunista da Revista Click REC