Quem já morou em casa com quintal decente, muito provavelmente já passou por essa situação. Um belo dia, sua mãe avisa que vai matar uma galinha para comer.
Você fica assustado, mas fica ávido de curiosidade para assistir a cena do crime. A ave é domada com ajuda das pernas, a mão esquerda suspende o pescoço, na mão direita a peixeira amolada. Ali por baixo um prato com um pouco de vinagre. Eis a reconstituição do crime que acontece todos os dias para deleite dos paladares regionais. O resultado desse homicídio doloso se vê nas panelas algum tempo depois.
É assim que começa o ritual de um dos mais emblemáticos pratos do glossário pernambucano de sabores: a galinha de cabidela. Quitute cheio dos rituais, basta o prato se anunciar nas panelas e se pensa logo em reunião familiar, dia de domingo, farra, cerveja. Obrigatórias numa verdadeira mesa pernambucana, a farinheira e a garrafa de pimenta malagueta artesanal são o complemento daquele cenário tradicional da culinária festiva. É liturgia do início ao fim. Da matança, passando pelo preparo, até chegar à boca.
Mas engana-se quem pensa que a cabidela é brasileira ou pernambucana. É fato que por aqui ganhou espaço, tornou-se um obelisco da comida popular de Pernambuco. Mas a cabidela é portuguesa da Silva. Do tempo dos afonsinhos, diria. Em terras lusas, ela é prato nacional, e pode ser preparado com galinha, ou ganso. Ganhou esse nome por ser feita com miúdos e extremidades, por lá conhecido como cabos. As aves são ensopadas em seu próprio sangue, o que lhe define o caráter. Em limites brasileiros, mais para as latitudes do sul, chamam de galinha ao molho pardo. Mas a receita é a mesma. Galinha cozida em seu próprio sangue com um pouco de vinagre. Dose mínima, para evitar a coagulação. “Bote vinagre se não talha”, dizem as cozinheiras mais experientes.
Pelas plagas européias, a receita também tem um prato parecido na cozinha camponesa da França: chateauroux, feito com ganso. Aqui, consagrou-se com galinha. De preferência, galinha matriz, aquela que se cria no quintal de casa, livre de hormônios, naturalmente gorda. A aparência pode assustar os marinheiros de primeira viagem, fascinantemente escura requer um pouco de coragem para se render a ela. Mas já dizia o poeta “a beleza e a verdade nascem do espanto” – nesse caso, catarse de sabor também. De tão saborosa ganhou citações nos meios literários portugueses: de Camões – esses olhos são panela/ Que coze bofes e Baco/ Com toda a mais cabadela”, e Eça de Queiroz – “maravilha cabidela de frango”. Isso porque tais poetas não chegaram a comer a cabidela preparada em Pernambuco, adaptada, se deixou catequizar através dos modos dos povos subjugados.
Por Eduardo Sena – Colunista da Revista Click Rec