O Santo que faz alimentar


A tradição de comemorar o São João vem de muito tempo, com os passar dos séculos a festa ganhou trânsito de mão dupla entre o altar católico e os festejos pagãos. Tudo isso, com muita comida, é claro.


A tradição de comemorar o São João vem de muito tempo, com os passar dos séculos a festa ganhou trânsito de mão dupla entre o altar católico e os festejos pagãos. Tudo isso, com muita comida, é claro.

Apesar de ter cara de Brasil, os festejos juninos tem raízes europeias, comemorava-se, nessa época, a passagem para o verão. Era uma tradição pagã, na qual toda cerimônia de cultivo – plantação e colheita, exigia um evento festivo. Ainda nesses idos, era comemorada a colheita do trigo, que acontecia no dia do solstício de verão, o mais longo do ano. A Igreja Católica, por sua vez, como não pôde ir contra as tradições pagãs, acomodou e acolheu. Assim, utilizou tal celebração como um mote para incorporar a população a sua doutrina, colocando um santo para essa festa, São João. E tudo isso veio para o Brasil. Na ausência do trigo, o português elege o abundante milho nativo do Brasil para comemorar a festa do santo católico.

Com toda a estrutura católica, criou-se aqui o seguinte calendário do cultivo do milho. Dia 19 de março, dia de São José, é dia de plantar – reza a lenda que nesse dia sempre chove. A colheita começa no dia de Santo Antônio, 13 de junho, e quando tudo dá certo, e São Pedro ajuda mandando chuva, São João se comemora com milho e fartura.

Com esse milho todo disponível, juntando com leite de coco trazido pelos africanos, juntando açúcar, foi nascendo o angu, o mungunzá, canjica, pamonha, bolo de milho, de fubá, de macaxeira, Souza Leão, pé-de-moleque, cocada. E nasceu aqui, também, o nosso cuscuz – da farinha de milho. Um cuscuz, que é muito mais saboroso do que o que o africano e português conheciam antes de aqui chegarem. A culinária junina é, portanto, um mosaico dos sabores altivos das raças. O milho indígena, com o leite de coco africano, técnicas de cocção portuguesas e especiarias européias tão utilizadas em nossos pratos: canela, cravo e gengibre.

Os lusos também nos ensinaram a importância do leite, do ovo, da manteiga. Com essas três influências, nossa gastronomia ficou forte. Forte como nosso povo, e generosa como nossa alma.

A redenção do milho

O milho, cultivado pelos tupis do litoral brasileiro, era só comida de passatempo e não matéria prima para um sistema alimentar. A forma mais recorrente de utilização do cereal era com espigas assadas diretamente sobre a brasa. Com ele, também faziam mingau grosso e, sobretudo, uma bebida muito apreciada, o abaati – em que caroços de milho, mastigados por mulheres da tribo, eram colocados na água para ferver e fermentar. Até muito depois da chegada do colonizador, foi apenas alimento de animal e de escravo.

“Plantam os portugueses este milho para mantença dos cavalos, e criação de galinhas e cabras, ovelhas e porcos; e aos negros de Guiné…” descreveu o relato de Gabriel Soares de Souza. O milho, nunca foi para os nossos índios, como cultura, tão forte quanto a mandioca. E, para o colonizador, era apenas alimento de animal e de escravo. Este último, por sua vez, foi, ao longo do tempo, criando novos jeitos de preparar esse milho. Juntando ingredientes que lhes consentiam usar a casa-grande – açúcar mascavo, leite de coco, mandioca. E todas as receitas foram incorporadas pelas senhoras de engenho.

Comidas tradicionais

Como resultado desse laboratório ministrado pelas três raças, a culinária de São João se formou fortemente cativando os mais diversos paladares. Entre esses pratos está o angu, servido na tradição religiosa africana às pessoas que compareciam aos velórios. É uma espécie de sopa doce que aqui passou a ser feita com milho branco, cozido em água e leite de coco, temperado com açúcar, erva-doce, e canela. No sul é conhecido como canjica.
Já a nossa canjica, aqui do nordeste (no sul, chama-se curau), é um angu mais refinado. O milho é mais trabalhado, é tirada toda a pele, para ficar só a massa, fazendo assim o prato ficar mais delicado. A pamonha, por sua vez, também vem da massa do milho. É uma adaptação da pamunhã (em tupi, papa grossa de milho) indígena, originalmente cozida na folha de bananeira, os escravos refizeram o método utilizando a palha do próprio milho como suporte. Contudo engana-se quem acha que tais acepipes são exclusividade nordestina. Não há maia, asteca ou inca que não tenha se nutrido primordialmente de milho. No México, por exemplo, come-se o tamal, um versão de pamonha. Do idioma nativo nahuatl, significa, literalmente, envolto cuidadoso. A massa pode ser de batata ou arroz, mas é feita prioritariamente com milho. Mas para abrandar esse megalomania triunfante do povo nordestino, sobretudo, pernambucano, um conforto: nossas comidas são, infinitamente, mais saborosas. Pois, potencializada com técnicas e iguarias de três raças,  agrada gregos e troianos.

 

Por Eduardo Sena- Colunista da Revista Click REC