Nesta segunda parte da série de reportagens sobre a Cozinha Contemporânea em Recife será discutido os conceitos de contemporaneidade aplicados na cozinha. Trata-se de uma questão de tempo ou de rótulo?
A harmonia sempre foi marca das práticas alimentares da humanidade no decorrer de sua existência. Quando o homem jogou a primeira erva sobre a mais remota carne, a humanidade progrediu. Passava de mera alimentação a culinária. O ser humano foi se reequacionando as novas descobertas, gerando uma mostra gastronômica de seu tempo. Sob esse aspecto, a cozinha contemporânea é a denominação da comida feita em sua época. Porém, definir essa vertente gastronômica com essa ideia é resumir grosseiramente a questão, pois estamos falando de uma cozinha evolutiva que se habitua às tendências.
Muito embora, essa vertente gastronômica começa quando surgem no mundo, nos idos 1450, as grandes navegações da era moderna. Ibéricos e ingleses começam a sair pelo mundo anexando colônias e com isso, unindo ingredientes e culturas culinárias. Na história do Brasil, a chegada dos portugueses com novos insumos e formas de cocção também foi marca dessa evolução da gastronomia brasileira, até então baseada nos insumos indígenas.
Na época do Brasil Colônia, as sinhás como alternativa para a ausência dos ingredientes lusos, promoveram a substituição pelos insumos nativos, obtiveram famosas receitas que sobrevivem até hoje. “Acontece que naquele momento, as sinhás estavam preocupadas em fazer uma cozinha doméstica, era uma questão de necessidade, e não de negócio”, lembra Bruno Albertim. Dona Rita de Cássia Souza Leão desprezou o trigo importado e a manteiga francesa em privilégio da massa de mandioca e da manteiga produzida com o leite nativo do engenho. Pela primeira vez, um bolo de aristocracia canavieira nordestina preteria o trigo europeu a despeito da massa nativa da mandioca dos índios. Entraria para a história, portanto, como uma espécie de grito de independência culinário.
Como consequência desses experimentos, o século 17 já possuía fortes características do que viria a se chamar posteriormente de globalização. Fortemente marcada pelos reflexos do movimento global na cultura alimentar, as práticas alimentares pós-modernas se tornaram vítimas desse processo. Cardápios de todo o mundo vêm sofrendo padronização e interferências de sabores. Posto isso, cada vez mais, e em qualquer lugar do mundo, as pessoas buscam valorizar o que se chama de cuisine du terroir, cozinha do terreiro. Ou seja, o comensal procura especialidades na mesa. “Dão valor ao queijo de cabra que só existe no sul da França, porque é único. Procuram uma manteiga de garrafa que só é encontrada com ótima qualidade no interior de Pernambuco. Assim, o mundo tem acesso facilitado a tudo o que o universo produz. Os gostos se uniformizam, e a comida global vira local, e o contrário também é verdadeiro”, explica Bruno Albertim.
Como consequência direta da globalização na mesa, não há mais grandes sustos culinários quando se viaja de um lugar para o outro. Para a chef Luciana Sultanum, na medida em que há uma uniformização desse gosto, as coisas que são peculiares, e que não tinham muito valor porque eram regionais, acabam aparecendo sobre o olhar do ineditismo e da peculiaridade. “O regional acaba aparecendo com essa grife de especial. Decididamente híbrida, a cozinha contemporânea aposta nessa tendência para conquistar o público, reunindo em um só prato emblemáticos insumos mundiais”, argumenta Sultanum.
Uma questão de rótulo – Segundo o dicionário Houaiss, contemporâneo significa aquilo inerente ao nosso tempo, ao presente momento. Mas, dentro da cozinha, tal conceito se aplica de forma diferenciada. Como gênero gastronômico, de fato, a cozinha “contemporânea” não tem mais do que dez anos. Herdeiros do espírito da nouvelle nuisine, na França, Claude Troigos e Laurent Saudeu são os responsáveis por implantar no Brasil a doutrina de cozinhar de forma criativa e audaciosa. Desde então, a cozinha brasileira foi evoluindo, mas não existia uma preocupação deliberada de batizá-la, apenas enxergavam-se as novas formas de se produzir como uma novidade. “Hoje, Claude Troigos e Laurent Saudeu só são considerados patronos desse movimento de cozinha contemporânea no Brasil, porque percebeu-se que eles deram origem a uma alta gastronomia extremamente tropical e brasileira. Mas na época a comida produzida por eles era apenas diferenciada”, opina o chef Duca Lapenda.
Foi assim com a nouvelle cuisine, na França, nos anos 80, e está sendo com a contemporânea, hoje. “O que se chamava de fusion, hoje é contemporâneo”, ressalta Lapenda. Nomenclaturas a parte, a cozinha contemporânea ainda não possui traços tão sólidos que a farão ser lembradas com esse rótulo daqui a uma década, por exemplo. “Hoje já se fala em cozinha molecular, cozinha de espumas. Pelo significado literal elas serão contemporâneas daqui a 10 anos, mas, muito provavelmente não se utilizará mais esse conceito”.
Assim como em outras épocas estavam em voga a nouvelle cuisine e o slow food, a gastronomia contemporânea está na moda. Outras expressões já estão nascendo, à exemplo da gastronomia molecular, do chef catalão Ferran Andriá e cozinha high-tech. É apenas uma necessidade, dos jornalistas que cobrem o assunto, de conceituar as novas cozinhas que nascem. Questionado se a cozinha moderna aponta para essa nova vertente como uma tendência exclusiva e definitiva, Andriá descarta hipótese “Haverá sempre diferentes padrões na prática do cozinhar. Tendência mesmo é saber elaborar alimentos diferenciados, com restrições importantes constituintes como gorduras e açúcares”, setencia.
Leia mais : QUEM TEM MEDO DO CONTEMPORÂNEO?
Por Eduardo Sena – Colunista da Revista Click REC