Recife, Pernambuco.Terceiro maior pólo gastronômico do Brasil. O título faz supor que a capital pernambucana, atrás apenas do Rio e de São Paulo, tem a maior população que sai para comer fora de casa.
Com tamanha dimensão, a comida servida nos restaurantes recifenses não se limitou ao tradicional, ganhou ares de modernidade, contudo, nunca abandonou o seu lado provinciano. Eis o desafio dos novos chefs: conseguir reunir em um mesmo prato a vanguarda e a tradição. Eles têm conseguido, com muito sucesso, diga-se de passagem. A partir de hoje, você vai acompanhar uma série de reportagens sobre a Cozinha Contemporânea em Recife. Como funciona essa cozinha moderna e inventiva em uma cidade de hábitos alimentares tão tradicionais. Quando Claude Troigos e Laurent Saudeu desembarcaram no Rio de Janeiro, no início do s anos 80, com o propósito de reproduzir a alta cozinha francesa em um hotel de luxo na cidade, a gastronomia brasileira deu um salto. Ganhava, despretensiosamente, uma nova expressão culinária. Essa dupla de franceses, ao chegar aqui, não encontrou ingredientes imprescindíveis para produzir essa haute cuisine. De um caro pedaço de foie gras a um simples creme de leite fresco. Foram à feira para buscar soluções, encantaram-se com os insumos tropicais, substituíram os ingredientes, e criaram a primeira “escola” brasileira de cozinha contemporânea. “Não foi deliberado. Viemos para fazer comida francesa, mas não tinha ingredientes”, ressalta Claude.
A ideia de utilização do que é da terra em novas possibilidades de apresentação, antes vista como cafona, a partir desse momento, ganhava adeptos em todo o país, e não tardou a chegar às plagas pernambucanas. O ano de 1992 foi um divisor de águas na gastronomia de Pernambuco, o chef César Santos abria, na histórica Olinda, o Oficina do Sabor. Um restaurante de comida regional com um apelo diferenciado: a revalorização dos prosaicos ingredientes dos mercados recifenses, através de misturas nunca antes combinadas. As frutas que só serviam para sucos e doces passaram a propiciar, também, molhos e recheios para carnes e frutos do mar. “Percebi que a comida regional estava cansada, então enxuguei o excesso de condimentos, e passei a valorizar o produto da terra de uma forma diferente”, explica César Santos.
O estilo vanguardista do chef resultou na transgressão da comida local. Deixou de ser culinária, e passou a ser gastronomia. Enquanto a primeira é a repetição das formas tradicionais de cocção, a segunda é o uso criativo da culinária, a manipulação de uma linguagem tradicional, gerando uma expressão mais pessoal. Para o jornalista e pesquisador gastronômico, Bruno Albertim, a cozinha contemporânea representa a radicalização deste conceito de gastronomia. “É uma cozinha que se utiliza de vários conceitos para gerar um expressão nova. Por exemplo, ao pegar um prato tradicional como uma assorda e remontá-la, é quebrada uma liturgia a qual o prato estava atrelado. A tradição é respeitada, mas é posta de forma diferente”, diz. O tão almejado rótulo de contemporâneo é algo novo, foi precedido pelo slogan de cozinha fusion, um campo bastante delicado, inclusive, chamado ironicamente de confusion, devido a confusão provocada por várias concepções em um único prato. “Era uma forma de se trabalhar na qual se misturava tudo aleatoriamente, fundindo culturas e elementos sem nenhum critério. E a cozinha contemporânea se abeberou nessa fonte para sua construção”, reitera Albertim. Como resultado, a cozinha contemporânea teve suas portas abertas para a utilização de qualquer ingrediente do mundo em sua execução, no entanto, de forma mais pensada. Uma das características dessa gastronomia é exatamete a erudição, posto que, o cozinheiro pensa em como vai usar vários insumos, dissonantes entre si, em um prato. Antes de pôr a mão na massa, existe um trabalho intelectual. É aí onde mora as propriedades dessa nova gastronomia, por ser uma cozinha inventiva, planejada intelectualmente, ela possui uma antecipação teórica como particularidade. Mais contemporâneo dos chefs pernambucanos, Douglas Van der Ley é categórico ao afirmar que também é um alquimista. “Para se fazer comida contemporânea é preciso ter um refinamento técnico e teórico expoente. O chef deve saber como os ingredientes se relacionam entre si. É preciso entender a participação química dos elementos de cada prato e conseguir distribuir essas necessidades de acordo com o repertorio que está sendo trabalhado”, explica Douglas.
Van der Ley ainda define essa gastronomia como “criativa, ousada e inventiva”, para isso, ela reúne elementos nunca antes pensados em uma cozinha de tradição. É necessariamente híbrida, na medida que funde ingredientes de qualquer lugar do mundo em um novo conceito. E para ser consagrada deve ter um resultado harmônico. “Não é simplesmente pegar um queijo do sertão, colocar um molho de mostarda francesa, aromatizar com uma erva africana, e dizer que é contemporâneo. O prato deve ter harmonia”, esclarece a jornalista gastronômica, Flávia de Gusmão. Seguir os critérios de erudição, antecipação teórica, hibridismo é a prova dos nove de um chef, mas é com a harmonização final que ele vai provar que além de ser um grande pensador da comida, também é um pesquisador de ingredientes, e tem uma grande capacidade técnica para manipular elementos dissonantes, obtendo assim, um resultado harmonioso.
Por Eduardo Sena – Colunista da Revista Click REC