Artistas: Aberlado da Hora

ABELARDO DA HORA
“Faço a minha arte respondendo a uma necessidade vital. Como quem ama ou sofre, se alegra ou se revolta, aprova ou denuncia e verbera”

 

O bairro da Boa Vista, mesmo com a sua particular agitação diária, esconde ruas tão tranquilas que por hora parecemos nos transportar para outra realidade. E foi na quietude da Rua do Sossego que o suntuoso artista Abelardo da Hora me recebeu. O final de tarde de uma quinta-feira, naquela rua, lembrava as calmas tardes de uma cidade interiorana, quebrada apenas por uma inesperada reunião de vigilantes frente ao seu sindicato.

A casa, que também serve de ateliê, parece ser minúscula se observado o seu exterior. Mas na medida em que vou entrando, revela-se sua grandiosidade tanto de tamanho espacial, quanto artístico. Um grande corredor repleto de esculturas e pinturas leva ao restante da casa, que também abriga dezenas de outras obras do artista.

A conversa segue ainda no corredor de entrada. Sentado em uma antiga cadeira de madeira de lei, sem camisa, vestindo apenas uma calça branca sobreposta por uma bermuda, também da mesma cor, e uma boina, ele me cumprimenta e começa uma emocionante conversa sobre arte, política, amor e vida.

Começamos falando sobre o Instituto Abelardo da Hora que funciona lá mesmo e ainda encontra-se em construção. Segundo o projeto, a finalidade do iAH é de divulgar, expor, promover, catalogar, realizar projetos, monumentos, estes e outros relacionados com a obra do escultor. Também almeja orientar o desenvolvimento de projetos culturais e sociais, promovendo a educação. Esse olhar voltado à contribuição social com a arte vem de anos atrás, na época em que atuou no Ateliê Coletivo.

O panorama artístico pernambucano foi renovado graças à criação do MCP, Movimento de Cultura Popular, que disponibilizou o ensino gratuito de arte aos novos talentos, integrando-a em uma espécie de universidade aberta, abrangendo as áreas de educação, cultura, artes plásticas, teatro e música. Dessa associação, foi criado em 1952 o Ateliê Coletivo, no qual consistia em uma oficina onde ministrava cursos de desenho, e contava com nomes como Gilvan Samico, José Cláudio e Aloísio Magalhães.

Depois de muita nostalgia dos tempos do ateliê, Abelardo me convida a observar as esculturas expostas no corredor. Fala com orgulho daquelas que retratam as mazelas sociais, em especial as que revelam os perfis nordestinos de fome e miséria. Com forte influência de Cândido Portinari, suas esculturas, realizadas em bronze, mármore e cimento, trazem em sua estrutura um caráter duro e áspero, acrescentando um grau de sofrimento às figuras.É dele obras intituladas como Os cantadores, Vendedor de caldo de cana, O sertanejo, Meninos do Recife.

Pergunto de onde vem a inspiração para as obras e ele, de imediato, responde que a inspiração vem da vida, no amor vindo de dentro. ”É a vida e o amor me inspirando, só isso“, enfatiza. Mas e a inspiração para as obras que retratam as mulheres? – Pergunto-lhe. “Ah, isso quem me inspira é a minha mulher“, diz sorridente. Ele demonstra tanto amor à arte, quanto pela sua mulher, Dona Margarida. Casados há 61 anos, os dois parecem ter encontrado a fórmula secreta de um casamento duradouro e com amor. Pergunto qual o segredo para durar tanto tempo e ele, ao lado dela me responde com um olhar sereno, daqueles que já viram e viveram 85 anos de experiências:

”Veja bem, o segredo consiste em três coisas: diálogo, tolerância e respeito. Muito diálogo, bastante diálogo. Tudo deveria ser resolvido na base do diálogo. Não deveria existir polícia, forças armadas, nada disso! Para mim, as coisas deveriam ser resolvidas com um simples bate papo. Só assim não haveria essa guerra horrorosa que existe hoje em dia. Você só ouve falar em bombas, é bomba nos Estados Unidos, é bomba no Afeganistão, é bomba na Coréia. É muito triste! Um dia o mundo vai se acabar com as guerras. As pessoas deveriam é se amar, amar muito! Tem mesmo é que beijar na boca, se abraçarem, se amarem. Só assim essas guerras acabam. Vocês jovens façam isso. Beijem muito, abracem muito, se amem muito. Só tenho isso a dizer”.

Seguimos para a sala de estar, que também abriga diversas outras esculturas e quadros de sua criação. Sentamos em um sofá, e continuamos a nossa conversa, às vezes, quebrada por ele chamando a empregada. ”Ô Nice!! Faz um café novo para eu tomar depois! Eu gosto tanto de um café novinho! Nice! Ô Nice!!”, e lá vinha a Nice várias vezes saindo da concentração de seu trabalho para atender às chamadas insistentes dele e da campainha: “Oxe, que pessoa insistente, não sei porque apertar tanto a campainha, que falta de educação”.

Ele complementa a conversa falando com orgulho sobre o projeto de lei que lançou no qual obriga a todo prédio exibir em seu espaço externo pelo menos uma obra de arte, seja ela uma pintura, uma escultura, etc. É dele também a lei aprovada na década de 60, que obriga a existência de obras de arte na cidade do Recife. Com isso, as ruas são tomadas por esculturas, não só dele, mas de diversos outros artistas, transformando a cidade em um amplo espaço cultural.

Sua mulher juntando-se à nossa conversa, falou sobre os tempos em que Abelardo foi preso. Ele era integrante do partido comunista, e por dezenas de vezes foi detido. “ele já foi preso mais de 72 vezes, de acordo com um jornal do Rio de Janeiro, e eu mesma já fui presa junto com ele, mas só fui duas vezes. O resto ele foi sozinho. Às vezes a gente tava aqui em casa e quando batiam à porta eu já sabia que era alguém da polícia para prender ele. Ai eu dizia, Abelardo, vieram te prender de novo! Vai abrir a porta!”, completa sorrido.

Já com o sol se pondo, finalizo as minhas observações e aproveito para tirar uma foto com os dois. Eles, com um tom de tristeza com a despedida, lembraram um pouco os meus avôs nas vezes em que ia visitá-los. “Você me manda a foto depois? Olhe, foi um prazer e se cuide”, disse ele. Saio da casa em que vivem há 51 anos com uma última pergunta: Seu Abelardo, qual a sua obra preferida? “Minha obra preferida é a que vou fazer”.

“Faço a minha arte respondendo a uma necessidade vital. Como quem ama ou sofre, se alegra ou se revolta, aprova ou denuncia e verbera.[…]Reflexo da convivência social e fixação de elementos sedimentados pela cultura da humanidade no seu itinerário histórico-social. Tenho compromissos fundamentais com a cultura brasileira e com o povo da minha terra.

A minha arte é feita dos meus sentimentos e de meus pensamentos: nunca os separo. A marca mais forte do meu trabalho tem sido entretanto o sofrimento e a solidariedade.
A tônica é o amor: o amor pela v ida, que se manifesta também pela repulsa violenta contra a fome e a miséria, contra todos os tipos de brutalidades, contra a opressão e a exploração. Arte pela vida em favor da vida. Às vezes grito violentamente nos ouvidos dos brutos e dos antropóides monstruosos que forjam as guerras e as discriminações. Mas às vezes canto: as vitórias da minha gente, o amor da minha gente, as belezas da vida.

“Não faço arte para os colegas verem nem para os críticos. Faço arte para mim e para a minha gente. Acho que o grande apelo atual da humanidade é a paz, o entendimento, a solidariedade e o amor enfim. Pretendo que a minha arte seja mais uma voz a reforçar esse apelo”, Abelardo da Hora.

Fotos:
Tarcisio