A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal homenageou um dos pilares do Estado Democrático de Direito: o devido processo legal. Ao analisar a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República contra um grupo de acusados de tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022 — composto majoritariamente por militares da ativa e da reserva, além de um agente da Polícia Federal —, o STF deixou a impressão de que não menospreza o processo penal, mesmo diante da elevada pressão social e política que casos dessa natureza inevitavelmente carregam.
A decisão que rejeitou a abertura de ação penal contra dois acusados, entre eles o coronel da reserva Cleverson Ney Magalhães, representou mais do que uma vitória pessoal para os acusados: simboliza o triunfo da legalidade sobre a narrativa, dos fatos sobre suposições, e da justiça sobre a tentação do julgamento sumário. O Supremo Tribunal Federal demonstrou que não há espaço para generalizações nem para acusações baseadas em culpas presumidas.
A legislação estabelece que ninguém será processado ou condenado sem que haja elementos mínimos que apontem para a existência de um crime e indícios suficientes de sua autoria e materialidade. Esta exigência, longe de ser meramente decorativa, é a principal garantia contra arbitrariedades. A denúncia contra os integrantes do chamado “Núcleo 3” trazia acusações gravíssimas, no sentido de atingir diretamente a estabilidade institucional do país. No entanto, gravidade abstrata não é sinônimo de procedibilidade. A complexidade do caso exige cuidado redobrado na análise dos elementos probatórios.
Em relação ao coronel Cleverson Ney Magalhães, ficou demonstrado que sua participação se restringiu a um encontro informal entre colegas, sem qualquer indício de adesão, apoio ou engajamento em atos de ruptura institucional. A própria perícia técnica realizada nos dispositivos telemáticos do acusado — ferramenta investigativa de alto alcance — não revelou qualquer participação, direta ou indireta, em atos preparatórios para um golpe de Estado. A denúncia não individualizou condutas, não trouxe elementos objetivos e se sustentou, em boa parte, em declarações de terceiros que, isoladamente, não são suficientes para submeter um cidadão ao peso de uma ação penal.
A atuação da Primeira Turma do STF foi acertada. Analisou, caso a caso, com atenção aos limites e possibilidades do direito penal, demonstrando que o Judiciário não deve agir movido por clamor público, mas orientado pelo conjunto indiciário e pelo respeito à legalidade. Esta postura é fundamental, sobretudo em tempos de polarização e de tensão institucional.
A defesa recebeu o resultado com serenidade e respeito. Não se trata de celebração, mas de reconhecimento: o Supremo agiu como se espera de uma Corte Constitucional — com equilíbrio, responsabilidade e rigor técnico. Foi essa postura que permitiu separar o joio do trigo, reconhecer quando há justa causa para ação penal e quando a acusação ultrapassa os limites da razoabilidade jurídica.
É preciso lembrar que o processo penal não é um instrumento de vingança, mas de justiça. Quando a Corte rejeita a denúncia contra dois investigados por ausência de indícios mínimos, ela está, na prática, protegendo o próprio sistema de justiça contra o risco de ser instrumentalizado. Está dizendo que a atividade acusatória exige responsabilidade e que transformar alguém em réu requer mais do que suspeitas: exige fundamento concreto.
Em anos de advocacia criminal, aprendi que o verdadeiro papel da defesa não é apenas livrar o cliente de uma acusação infundada, mas proteger os contornos do processo justo. Somos defensores, sobretudo, de direitos. E é isso que celebramos com a decisão desta semana: a reafirmação do direito de todos a um julgamento técnico, baseado em provas e conduzido com isenção. Que esse exemplo se mantenha como norte, especialmente em tempos em que a serenidade jurídica é o que mais precisamos.
Por Luiz Mário Guerra,
advogado e sócio do Urbano Vitalino Advogados
*Via Assessoria