Nos últimos anos, observa-se um crescimento significativo da judicialização das demandas relacionadas à saúde suplementar no Brasil. Esse aumento decorre, em grande parte, das negativas – muitas vezes consideradas infundadas – por parte das Operadoras de Planos de Saúde, quanto ao fornecimento de medicamentos, procedimentos ou tratamentos não previstos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS ou sujeitos às Diretrizes de Utilização (DUT). Entre esses casos, destacam-se os medicamentos de uso ‘off-label’ (fora bula).
O termo ‘off-label’ refere-se à utilização de medicamentos para finalidades distintas daquelas originalmente aprovadas em bula. Um exemplo simbólico são os medicamentos agonistas, popularmente conhecidos como “canetas emagrecedoras”, que foram desenvolvidos para o tratamento do diabetes, mas vêm sendo amplamente utilizados para o emagrecimento, especialmente por clínicas e indivíduos leigos, sem conhecimento técnico acerca de seus riscos e implicações.
Em abril de 2025, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)¹ aprovou medidas de controle mais rigorosas para a prescrição desses medicamentos, como a necessidade de receita médica para sua comercialização, assim como acontece com os antibióticos. Importa destacar, contudo, que a nova regulamentação não restringe o direito do profissional médico de prescrever medicamentos com finalidades terapêuticas diversas daquelas constantes da bula. A decisão da agência, que altera a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 471/2021, entrará em vigor 60 (sessenta) dias após sua publicação, ou seja, em meados de junho do corrente ano.
Acrescenta-se que estudos realizados entre os anos de 2021 e 2024² demonstram que medicamentos agonistas, como a semaglutida (comercializada sob o nome Ozempic), por exemplo, apresentam eficácia relevante na indução da perda de peso em indivíduos que não são portadores de diabetes – enfermidade para a qual a medicação foi originalmente desenvolvida – mas, em contrapartida, possuem diversos efeitos adversos que vão desde náuseas, diarréia e vômitos a distúrbios pancreáticos, neoplasias pancreáticas, cegueira, retinopatia, hipoglicemia, taquiarritmias e arritmias. Afinal, não foram feitas para não-portadores de diabetes.
Diante desse contexto, é importante refletir: quais são os impactos econômicos concretos para as Operadoras de Planos de Saúde ao serem obrigadas a custear essas medicações?
É de bom alvitre trazer ao debate que a judicialização da saúde teve um aumento de 16% entre os anos de 2022 e 2023³, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Ademais, observa-se que muitos magistrados, diante da complexidade técnica das demandas em saúde suplementar, acabam por decidir com base exclusiva em laudos médicos apresentados pelas partes, os quais, na prática, acabam por adquirir um peso quase normativo.
Diante desse panorama, alguns Tribunais de Justiça passaram, inclusive, a instituir câmaras especializadas para o processamento e julgamento de ações envolvendo a saúde suplementar, o que demonstra a complexidade e a relevância crescente do tema no Poder Judiciário.
Tudo isso revela uma realidade inegável: para as Operadoras de Planos de Saúde, o momento atual representa um ambiente de constante instabilidade financeira. A cada nova mudança no setor — seja por decisões judiciais, novas regulações ou, como no caso dos medicamentos agonistas, pela omissão dos órgãos reguladores — os planos de saúde se veem obrigados a fazer verdadeiros malabarismos para equilibrar suas contas e evitar colapsos no sistema.
A conta, como frequentemente ocorre, recai sobre os próprios beneficiários. Estes, diante do aumento das mensalidades, recorrem ao Judiciário pleiteando a revisão ou redução dos reajustes, muitas vezes obtendo decisões favoráveis com base em fatores diversos.
Entretanto, em debate junto ao Comitê de Saúde de um dos Tribunais do país que aconteceu no começo do também mês de abril/25, a preocupação era justamente: e se os planos de saúde no Brasil forem extintos, como sequer existem em muitos países do mundo?
É preciso reconhecer, enquanto beneficiária e operadora do Direito, que para toda decisão, seja ela judicial, administrativa ou legislativa, há sempre um impacto real na ponta do sistema: na sustentabilidade da saúde suplementar, na viabilidade dos contratos e, sobretudo, na própria dignidade do usuário. Tal constatação dialoga diretamente com o que dispõe o art. 20 da LINDB, que exige da atuação judicial, administrativa ou controladora a consideração das consequências práticas das decisões, em consonância com os fundamentos da Análise Econômica do Direito.
Como destaca Carlos Ari Sundfeld, “a LINDB exige uma atuação institucional responsável, baseada em avaliação concreta de impactos e não apenas em ideologias normativas ou ativismos bem-intencionados, mas economicamente desastrosos”.
O Superior Tribunal de Justiça tem aplicado a LINDB em decisões sobre regulação econômica, inclusive no setor de saúde suplementar no REsp 1.803.146/SP, rel. Min. Herman Benjamin, j. 28/05/2019: “É necessário que o Poder Judiciário considere os impactos regulatórios e econômicos de suas decisões, notadamente quando envolvem políticas públicas de saúde, para evitar desequilíbrios sistêmicos”.
Assim, a discussão sobre o uso ‘off-label’ de medicamentos agonistas escancara a fragilidade do modelo atual, em que decisões clínicas, expectativas sociais, ausência de regulação clara e judicializações crescentes se entrelaçam num emaranhado de incertezas. A ANVISA, ao editar nova regulamentação, deu um passo importante, mas ainda tímido, diante da complexidade do tema.
Enquanto isso, as Operadoras de Planos de Saúde caminham numa corda bamba, pressionadas por decisões judiciais que ampliam coberturas, por beneficiários que exigem respostas imediatas e por um sistema regulatório que, por vezes, demora a se posicionar.
Nesse contexto, o Judiciário é convocado a exercer um papel de equilíbrio, não apenas garantindo direitos individuais, mas preservando a lógica coletiva e contratual do setor.
Se os planos de saúde ruírem, como alertado no debate recente, o prejuízo será de todos. Afinal, ainda que imperfeita, a saúde suplementar cumpre um papel essencial na descompressão do sistema público de saúde.
Cabe, portanto, a todos os atores (operadoras, órgãos reguladores, magistrados e usuários) atuar de forma responsável, técnica e sensível, buscando soluções que preservem tanto o direito à saúde quanto a sustentabilidade do setor, porque afinal de contas o verdadeiro equilíbrio está em compreender que o contrato não é apenas um instrumento jurídico, mas um pacto de confiança social.
¹ AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Canetas emagrecedoras só poderão ser vendidas com retenção de receita. 17 abr. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2025/canetas-emagrecedora-so-poderao-ser-vendidas-com-retencao-de-receita.
² Análise do uso do Ozempic para perda de peso e tratamento da obesidade na atualidade: uma revisão integrative. Brazilian Journal of Integrated Health Studies, v. 7, n. 2, p. 45–58, 2024. Disponível em: https://bjihs.emnuvens.com.br/bjihs/article/download/4985/5021/11016.
³ INAFF – INSTITUTO NACIONAL DE AUDITORIA EM FARMÁCIAS. Número de judicialização na saúde registra aumento. 2025. Disponível em: https://www.inaff.org.br/noticias/numero-de-judicializacao-na-saude-registra-aumento.
Advogada da área de saúde suplementar do escritório Urbano Vitalino Advogados
*Via Assessoria