Responda rápido. No âmbito gastronômico, qual dos cinco sentidos humanos é o mais importante? Suponho que você tenha pensado no paladar. É uma resposta racional. Sim, o gosto é digno de apreço, ainda mais se for avaliado de forma sorrateira. Mas em linhas gerais não é tudo.
Principalmente nos dias de hoje, no mundo globalizado, em que a ausência de um ingrediente fundamental – o tempo – vem mudando os hábitos alimentares, exigindo rapidez até hora de comer. As pessoas praticamente não percebem o que comem, em pé, diante da televisão, no trabalho, pela rua, comer é um ato quase sempre mecânico. Talvez um antídoto para isso, que a pós-modernidade ainda não levou, seja nossa capacidade de ser transportado pelo cheiro. Esse sim, o essencial em uma comida.
Não se trata de mero romantismo, é que cheiros podem se tornar inesquecíveis. Cada pessoa tem o seu predileto; e, junto a ele, somos surpreendidos por uma gama de reminiscências. E basta uma mínima lembrança para que tudo volte: a temperatura do momento, a felicidade ou a tristeza que se sentia, as imagens de quem estava perto, tudo. Aromas podem ser alegres ou tristes. Era muito bom quando se estava em casa, antes do almoço, e se sentia o cheiro de alho e cebola refogando para se fazer um arroz, ou uma carne de panela. Quantos segundos você leva para atravessar o tempo e voltar aos seus 9 anos? Comida não nutre apenas o corpo, também alimenta os sentidos. Posso ainda lembrar do que costumava vestir nesse horário, do que estava fazendo, do nome da empregada.
Lembro quando há muitos anos ia passar as férias na casa de minha avó materna, Eloíza. Ah, casa de vó tem aromas especiais, como o do piso da casa encerada. Bastava chegar para ouvir: “Cuidado para não escorregar”. Que cheiro limpo, honesto, de gente direita. Será que isso ainda existe? O da comida então merece capítulos a parte. O cheiro do café coando, anunciando que o dia começou, o da macaxeira cozinhando, da carne de charque escaldando – quando fritava com cebola, então- do pão quentinho dentro da cestinha. São cheiros absolutamente inesquecíveis, e como a máxima faz supor, me recordo até hoje. Lembro também que em frente a casa dela vendia-se tangerina. E comê-las era uma de minhas diversões da tarde. Aliás, tangerina não, mexerica; aquela pobre, da casca fina, que deixava a mão cheirando durante três dias. Esse é um cheiro muito alegre.
Mas também tem cheiros de sofrimento que até hoje tenho trauma. Vovó tinha um pé de abacate em casa, e me obrigava a tomar a vitamina da fruta. Era um copo largo e comprido que devia caber uns 500ml. Bebia a pulso, na marra, segurando o vômito. Até hoje, poucas coisas me fazem enjoar tanto, quanto o cheiro de abacate com leite. O cheiro do bolo de cenoura saindo do forno também é para sempre. E se for de tabuleiro, cortado grosseiramente em quadrados, com cobertura de chocolate então… Um detalhe precioso: naquele tempo, por mais que se comesse não se engordava, e em cima da mesa havia sempre um vidro Biotônico Fontoura para abrir o apetite. Que felicidade ter vivenciado a infância na casa de avó!
E não é só de comida que existem cheiros. Na categoria angustiante têm os de hospital, de sala de cirurgia, de cravo (flor). E existem os aromas ricos: de carro novo, charuto, dólar (a moeda tem um cheiro peculiar). Cheiros afrodisíacos, como o de sexo que fica. Cheiro de paixão ou repúdia, quando sentimos a fragrância do perfume que um antigo amor usava. Por falar nisso, o cheiro do homem/mulher que se ama, depois do amor, é melhor nem lembrar para não desmaiar de saudade.
Os lugares também têm seu cheiro, cada uma muito particular: se for levado, de olhos vendados, para o Pelourinho, saberei na hora que estou em Salvador (a cidade tem perfume de dendê). E se respirar um aroma de cominho misturado ao coentro terei certeza que estou em algum boteco do Recife. Mas poucos cheiros são tão especiais quanto o de uma cozinha em movimento, pois ventre que é, ali se aquecem os materiais da vida.