Moacyr Luz é cantor e compositor carioca. Tem nove discos gravados e é uma referência do samba e da música popular brasileira. Gostaria que esse papo tivesse ocorrido numa mesa de butiquim com o mestre tomando um bom Riscal e eu uma tradicional batida de maracujá. Sempre gentil e atencioso, este ícone do Rio de Janeiro nos conta detalhes de sua carreira e de uma vida inteira dedicada a música. Ou melhor, ao samba.
Moacyr Luz, na verdade, eu gostaria de poder saber mais da sua história. De vida, família, enfim, deste filho do Rio de Janeiro.
Nasci e vivo carioca há 52 anos. Morei em inúmeros bairros desta cidade: Jacarepaguá, Catumbi, Botafogo, Santa Tereza, Copacabana, Bangu, Méier, Tijuca, Grajaú e Glória…
Acho que essa mistura de ruas de diferentes classes sociais ajudou muito na minha identidade pra compor, pra pensar cultura.
Você lembra como ocorreram os seus primeiros contatos com a música?
Já contei que meu avo foi clarinetista da Banda do Corpo de Bombeiros. Numa época em que essa formação atuava em clubes e coretos com uma assiduidade importante. Assistia pequenos concertos na extinta TV Rio…
Um fato curioso hoje me chama atenção na vida: – nós éramos vizinhos do Dorival Caymmi. Havia um ritual de encontrá-lo perto da banca de jornais…
Meu avô tinha discos dele, acho até pelo fato da proximidade…eu ouvi muito essas canções praieiras, sem a menor maturidade…
E a paixão pelo violão, quando começou?
Meu pai morreu no dia 8 de abril de 1973, encostei no violão dois dias depois. Tenho certeza que foi algo divino trazer o violão pra amenizar a saudade…transferir segredos.
Minhas confidências viraram acordes, tenho certeza disso…
Como foi o processo de decisão pela música como profissão? Antigamente as coisas eram bem diferentes dos dias atuais, a sociedade era muito mais preconceituosa em todos os sentidos. Foi algo natural? Ou existiu algum tipo de represália familiar?
A música é um destino. Se ela for o teu caminho de vida é impossível ser feliz se o teu navio mudar a rota. Até hoje acho delicado não enxergar com naturalidade o futuro. Também penso que aqueles que sonham com essa profissão pelo glamour podem se tormar ricos infelizes. Aos que respiram música de verdade, a riqueza se renova todos os dias…
E o começo de carreira? Foi complicado?
Acho complicado até hoje! Minha carreira é muito de carregar pedra. To sempre propondo coisas..compondo como compromisso, com a música e com a minha estética..
Você só percebe o significado de carreira quando elos vão se criando em torno do teu trabalho, o dinheiro, músicos contando contigo, parcerias, agenda…
Aí você já esta com ‘o pé nessa estrada’…mas acho que até ser bancário, médico, é difícil.
Ouvindo o seu primeiro trabalho, o disco de 1988, noto que ainda não há uma vertente muito forte para o samba. Quando e como isso ocorreu?
É difícil explicar minha carreira por esse aspecto…
Sou sinceramente um compositor. Gostaria de ter a liberdade de fazer canções como ‘Pra Que Mentir” de Noel Rosa, ou ‘Autonomia’ de Cartola, e ser batizado de compositor.
Duas coisas: – um dia, conversando com o mestre Monarco, pensamos em quantos instrumentos de percussão seriam necessários pra se fazer uma roda com o Cartola.
– outra vez, tive a honra de fazer um show com o João Nogueira. Na matéria do jornal eu era chamado de compositor e ele de sambista…ele ficou intrigado! E eu também!
Eu sou um fã confesso de Aldir Blanc. E ele teve um papel fundamental para conhecer o seu trabalho. Aquela história que te contei de estar lendo os créditos do Vida Noturna, obra-prima do Aldir, e ter visto seu nome como produtor da mesma. Particularmente, carrego este disco na minha cabeceira, como o disco da minha vida em termos de MPB. Como surgiram as parcerias com Aldir? A Tijuca, o coração e o álcool foram os maiores inspiradores?
Abreviando, moramos 23 anos no mesmo prédio, uma construção de 4 andares, pequeno…a gente fazia músicas com o porteiro subindo e descendo as escadas com letras e fitas cassetes…tenho nas minhas contas 87 músicas que foram gravadas e outras tantas dentro da gaveta…o Aldir me ensinou mais sobre o Rio..entender os botequins que sempre bebi como parte da minha vida sem culpa, os becos e as pessoas que fundaram isso tudo, amigos que fiz com ele como o Lan, Jaguar, Veríssimo, mais.
Mudando um pouco de assunto agora Mestre. Há uns dias atrás andei trocando uma idéia com o Gabriel, e ele me falou que o Samba da Ouvidor, que está ocorrendo com mais freqüência, é feito na cara e na coragem. Achei isto uma demonstração de amor imenso a causa. Falo desse modo, porque muita gente tem na cabeça que o samba no Rio de Janeiro é aquela coisa das mil maravilhas e quem adentra mesmo no ramo vê que não é assim. Digamos que é como se existisse o “samba da Lapa” e o samba mais tradicional. Você tem uma grande parcela nesta luta em prol dos sambas de rua, mais populares. O que você pode falar sobre o Renascença, o Samba de Santa Luzia e o da Ouvidor?
Algumas pessoas enxergam nessas rodas um negócio, mas a história, sinceramente, é outra. Não incluo o Santa Luzia nessa lista por ser gerido por um amigo que é empresário, do ramo, mas tanto na Ouvidor, quanto o Renascença, mais antigo, nosso grande retorno é a referência criada, um farol, uma alternativa de visibilidade. Hoje, vamos mantendo a chama acesa, lutando contra os que gostam de soprar contra, agradecendo os ventos à favor da maré.
Em tempo: não existe tanto ‘glamour’ assim no Samba da Lapa. Das várias casas de samba, acho que apenas uma ou duas têm público garantido.
Quando estive no Rio em novembro passado, tive o prazer de conhecer uma figura ímpar. O Alfredinho do Bip Bip. Uma das coisas que mais me chamou atenção foi de como ele fala bem dos músicos. É como se fosse uma parceria natural e verdadeira entre a música, representada por aqueles que a fazem e o prazer de estar num local onde se possa fazer música com qualidade? É mais ou menos assim que rola? Soube até que você já interpretou uma música pela primeira vez por lá…
A minha relação com o Bip e o Alfredinho é antiga, forte e de grande agradecimento. O bar tem um tamanho mínimo, banheiro único, conforto tímido e muitos outras proparoxítonas suficientes pra explicar a ilíada que é gerir essa história…Pois, desde o inicio, o Alfredo conseguia reservar um espaço pra ter nossos discos alternativos, vender sem qualquer interesse comercial e propor, quando tudo ainda era obscuro na zona sul, samba pra nova geração. Ali sentavam Cristina Buarque, Elton Medeiros, Wilson Moreira, Nelson Sargento, Paulão 7 Cordas e, raramente a minha presença, cantando samba pros futuros arautos desse enredo.
O assunto agora é botequim. Em 2008, você lançou o Livro – “Botequim de bêbado tem dono”, um manual com 25 crônicas sobre “pés-sujos”. Neste livro, tem uma frase interessantíssima que é mais ou menos assim: “O botequim ideal não pode ter a parede tão branca e limpa como a de um hospital, ou ter baratas no chão…”.
Gostaria de saber o porquê deste elo tão forte entre o carioca e a cultura de botequins? Dentre todos estes, já vivenciados e bebidos, existe algum que mexa com seu coração?
Acho que historicamente, a convivência com os portugueses na época da Coroa, influenciou muito os nossos hábitos, sem contar um calor senegalês que exige um chope a cada esquina.
Já bebi em toda sorte de botequim na vida. Hoje ando menos corajoso. Na verdade, esse exercício exige um preparo que não tenho mais, pena.
“Butiquim” de verdade tem que ter comida de resistência pra manter o porre sob controle. É rabada, mocotó, dobradinha, um belo pernil, carnes assada e seca, de panela, por aí…
Minha grande questão hoje em dia é não confundir Pé Sujo, com Butiquim Sujo… o ‘pé sujo’, deduzo, era por conta da serragem no chão…
Se você for pesquisar, a higiene é moderno….não precisa regredir.
Em julho do ano passado, foi criado aqui em Recife o Clube de Samba Recife. A idéia do nome foi de homenagear o grande e saudoso João Nogueira, além de dar ênfase aos 30 anos que o Clube do Samba do Rio iria completar. Como tudo que é novo, o apoio não chegou. Só que agora, praticamente um ano depois do lançamento, já tivemos um público de 2000 pessoas, no Morro da Conceição, “aos pés da Santa”. Você mais do que ninguém, sabe da importância desses movimentos para uma cidade e, principalmente, para a música. O que você pode dizer para estas pessoas que lutam pelo ritmo mais tradicional do nosso país? E em nome do Clube do Samba Recife e, principalmente, de nossa Presidente Karynna Spinelli, o convido para ser membro e a vir participar de uma de nossas rodas.
Geralmente as manifestações populares e espontâneas raramente recebem apoio do poder público…
Um dia, uma roda como essa, vira eco e repercute no estado, no país, no mundo, e logo vem um gaiato querendo se aproprias da idéia…
Quando você fala de duas mil pessoas minha lembrança remete ao início do Samba do Trabalhador…Ninguém levando a sério uma roda de samba que tinha como serviço: 14 horas de uma segunda-feira. Até que apareceu a Folha de São Paulo, deu página…a BBC de Londres e um documentário pra Austrália…Todos correram..
Ainda há tempo!
Quanto a ser membro, uma honra! Olha só: ainda sou da Academia Brasileira da Cachaça e hoje ocupo a cadeira 23, posto que já pertenceu ao meu querido João Nogueira.
Voltando a falar na sua carreira, percebo que a mesma é regida por muitas amizades e parcerias. Certa vez li uma entrevista que você afirmava que as reuniões com os amigos para tocar e compor, eram extremamente necessárias. Com o passar do tempo essas parcerias se renovam e outras aparecem em forma de admiração e talento. Hoje em dia, nas suas apresentações, você é acompanhado por um fiel escudeiro chamado Gabriel Cavalcante, grande cavaquinista e dono de uma voz belíssima. Como ocorre essa junção entre você, como grande compositor e a turma da nova geração?
Agradeço o carinho de ser batizado por você como grande compositor, mas estou rigorosamente repetindo o aceno que recebi há mais de 30 anos quando o Hélio Delmiro me ensinou a ouvir música.
O Aldir me ensinou a falar, brinco sempre.
Procuro estar perto o tempo todo dessa nova geração É o que mantém vivo um compositor: ser elo, ser continuação…
Moacyr, sei que você é mangueirense de coração, e dos bons. Por outro lado, sei de sua admiração por outras escolas como a Vila Isabel e Portela. O que está acontecendo com essas escolas mais tradicionais? O samba da Sapucaí perdeu a essência? Os grandes compositores de barracão estão em extinção?
Acho que essa história de escola de samba e sua decadência social é repetição de outras manifestações como fenômeno de nova civilização... Frase complicada, mas pergunto: – alguém ainda vê emoção em jogadores de futebol, no mercado da música com artistas inventados, atores e “big-brothes”? Estamos vivendo uma época de globalização. Foi-se o tempo em que todos seriam famosos por 15 minutos…Agora bastam três…
Sempre peço no final das minhas entrevistas que o entrevistado cite os 3 principais nomes que foram essenciais para sua carreira. Quem foram os seus?
Puxa…são tantos nomes!
De cara: Ary Barroso
Depois entram num raro caldeirão de riquezas, nomes como; Cartola, Tom Jobim, Nelson Cavaquinho e Dorival Caymmi…
Vídeo:
Moacyr Luz – Som De Prata:
Samba da Ouvidor – Livraria Folha Seca
Por Gilberto Valle – Colunista da Revista Click REC